Quando o true crime deixa de informar e começa a explorar

Quando o true crime deixa de informar e começa a explorar
Evan Peters em "Dahmer: Um Canibal Americano" — Divulgação/Netflix

Ele matou a esposa.
Ela sumiu misteriosamente.
A polícia errou.
O caso foi reaberto.
O algoritmo agradece.

A ascensão dos documentários de true crime transformou o horror da vida real em roteiro pronto para maratona.
Casos reais de assassinato, desaparecimento e abuso ganharam edições cinematográficas, trilhas sonoras tensas, narrações envolventes — e um lugar fixo na sua lista do streaming.

Mas a pergunta desconfortável é inevitável:
até que ponto estamos nos entretendo com o sofrimento alheio?
E por que não conseguimos parar de assistir?

A fórmula do crime perfeito (para o streaming)

Não é à toa que as plataformas de vídeo amam o gênero.
Os documentários de crimes reais têm todos os elementos de um bom drama:

  • Mistério

  • Plot twist

  • Vilão claro

  • Vítima trágica

  • Suspense contínuo

  • E o bônus: aconteceu de verdade.

Na lógica do algoritmo, isso é ouro.
O true crime vicia. Prende. Gera buzz.
E, em muitos casos, transforma dor em tendência.

Do caso à cultura: o crime como produto

Basta um caso ganhar projeção para surgir uma avalanche de conteúdo:
🎙️ Podcasts analisando cada detalhe
📺 Séries e especiais documentais
📘 Livros com versões alternativas
👕 Camisetas com frases de serial killers
📱 Threads, teorias, memes

A tragédia vira narrativa. A vítima vira personagem.
E o crime, que deveria ser motivo de luto e reflexão, se transforma em produto de entretenimento.

Isso tem nome: espetacularização da dor.
E, embora muitas vezes feita com verniz de “jornalismo investigativo”, nem sempre há cuidado — e quase nunca, consentimento.

O problema ético que fingimos não ver

Imagine que alguém da sua família foi vítima de um crime brutal.
Anos depois, a história vira minissérie.
A sua dor é dramatizada, reencenada, consumida por milhares — como se fosse ficção.

Parece cruel?
É exatamente o que acontece todos os dias.

As vítimas (ou seus parentes) raramente são ouvidas.
Os envolvidos são julgados na internet, fora do processo legal.
E o público esquece que por trás da tela, existem vidas de verdade — e traumas que não acabam quando os créditos sobem.

Por que gostamos tanto de true crime?

Não é só morbidez.
Psicólogos apontam que o fascínio por crimes reais tem raízes profundas:

  • Sentimento de segurança: “se eu entender como aconteceu, posso evitar”

  • Curiosidade humana por desvios e limites sociais

  • Vontade de fazer justiça simbólica onde o sistema falhou

  • Prazer em “resolver” um mistério

  • Catarse diante do caos

Ou seja: não é errado se interessar por crimes.
O problema está em como e por que consumimos isso.

O que estamos normalizando?

Quando assistimos à quarta série sobre o mesmo assassino, discutimos teorias em grupo e compramos “caneca do maníaco da rodovia”… estamos, mesmo sem perceber:

  • Dessensibilizando a violência

  • Romantizando criminosos

  • Reduzindo pessoas a enredos vendáveis

  • Ignorando a dor real por trás do espetáculo

Aos poucos, o horror se torna entretenimento.
A empatia, ruído de fundo.
E a vítima, figurante no próprio drama.

Existe um jeito mais ético de consumir?

Sim. E passa por algumas perguntas importantes:

  • Esse conteúdo humaniza as vítimas ou as transforma em ganchos?

  • Os familiares consentiram com a divulgação?

  • O material traz reflexão ou só tensão?

  • Estou buscando informação ou apenas emoção?

  • O que esse conteúdo está reforçando culturalmente?

É possível se interessar por crimes reais sem alimentar a indústria do espetáculo.
Mas exige escolha, consciência e crítica.

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