
Durante muito tempo, estar endividado no Brasil era motivo de vergonha.
Ser “nome sujo” era visto como falha moral, quase um atestado de descontrole ou irresponsabilidade.
Mas isso está mudando — e rápido.
Hoje, o número de brasileiros endividados nunca foi tão alto.
Mas, curiosamente, a culpa diminuiu.
Em vez de esconder a dívida, muita gente passou a aceitá-la como parte do jogo.
Não se trata mais de um deslize: é um estilo de vida possível (e às vezes, inevitável).
O que aconteceu?
Dívida virou ferramenta — não acidente
Nos últimos anos, o crédito no Brasil passou por uma mudança de imagem.
Com a digitalização dos bancos, o surgimento das fintechs e a promessa de inclusão financeira, endividar-se passou a ser incentivado — e até normalizado.
Cartões múltiplos, limite pré-aprovado, parcelamentos infinitos, cashback, “compre agora, pague depois”…
Tudo isso criou uma nova relação com o consumo.
E também com a dívida.
Hoje, muita gente se endivida não porque perdeu o controle, mas porque tomou a dívida como estratégia de sobrevivência — ou de acesso.
É o crédito usado para:
Garantir o mês com o básico
Comprar um celular novo e continuar trabalhando
Parcelar o supermercado sem culpa
Manter uma aparência de estabilidade num cenário instável
A dívida passou a ser mais racional, mais pensada — e por isso mesmo, mais comum.
O peso da culpa diminuiu. Mas a dívida aumentou.
De acordo com dados recentes do Banco Central, mais de 78% das famílias brasileiras estão endividadas — e não estamos falando apenas da classe baixa.
As classes médias também parcelam, renegociam, refinanciam.
O ponto é que, se antes a dívida era vista como um desequilíbrio individual, hoje ela é entendida por muitos como um sintoma coletivo de um sistema desigual.
A culpa, que antes era toda do consumidor, passa a ser dividida com os juros altos, os baixos salários, a pressão do consumo e o marketing de crédito fácil.
É uma mudança sutil, mas profunda:
O endividado deixou de ser o “culpado” e passou a ser o retrato de um país onde ter dinheiro não é o normal — é o privilégio.
Crédito como estilo de vida
Com o avanço das fintechs, o crédito passou a ser embutido no cotidiano de forma quase imperceptível.
Hoje, tudo vem com um botão de “parcelar em 12x”.
Você pode dividir até um lanche, um show, um boleto de luz.
Mais do que uma solução financeira, o crédito virou uma linguagem cultural.
É o que permite viver “como se”.
Como se desse pra pagar. Como se fosse possível adiar tudo.
É o que sustenta o imediatismo — e a ilusão de que o problema só começa mês que vem.
E isso é reforçado por plataformas, bancos e influenciadores que falam de “crédito inteligente”, “controle via app” e “educação financeira simplificada” — sem mostrar que o risco é maior do que parece.
E se a dívida virou rotina?
O grande perigo da normalização da dívida não é moral.
É estrutural.
Quando todos vivem no limite, o consumo cresce… mas também a ansiedade, a inadimplência e a vulnerabilidade econômica.
E mais: uma população permanentemente endividada tem menos margem de escolha, de negociação e de autonomia.
Fica presa ao ciclo:
Gasto para manter um padrão mínimo
Parcelo para não ficar de fora
Pago juros e rolo a dívida
Me acostumo a sempre dever
Isso não é só um dado econômico.
É um modo de vida — e ele tem consequências políticas, emocionais e sociais.